Portugal, o Algarve, entrou agora em estado de calamidade. Para acabar com o COVID-19 acabámos confinados em casa. Interromperam-se tradições da serra algarvia, como é o caso da matança do porco, que tinham importantes funções sociais e comunitárias, para além de um estatuto de relevo na dieta mediterrânica.
A matança caseira do porco foi proibida há uns bons pares de anos mas, na verdade, o peso da tradição é bem mais forte do que a força da lei. Consequentemente, aqui e ali pela serra algarvia, de Monchique a Alcoutim, e provavelmente por todo o país rural e interior, continuam a matar-se porcos à antiga, em casa.
Muito são os motivos para tal. O porco é um animal robusto, de criação fácil em cativeiro, e é um importante agente de reciclagem, porque come de tudo. Não há restos que lhe resistam! Para além disso, no porco tudo se aproveita e o animal oferece múltiplos produtos que podem ser consumidos ao longo de meses. A carne para consumo em fresco, a carne conservada em sal ou na arca frigorífica, os presuntos, a carne migada para os enchidos, chouriças e morcelas, a banha. As pequenas aves de criação, como as galinhas, não proporcionam nada disso e a única vantagem comparativa de que se podem gabar é mesmo a dos ovos.
O porco tem, na cultura serrenha algarvia, uma ligação à festa. Na matança são precisos vários homens para cumprir todos os procedimentos inerentes ao acto. Na família nuclear não há braços suficientes e é necessário que vizinhos e amigos compareçam para ajudar. E claro está que no final da matança ninguém vai em casa, fica para a festança...
Se a matança e a desmancha do animal são tarefas masculinas, migar carne, lavar tripas e fazer enchidos são tarefas femininas. Logo, para a matança e depois para a festança juntam-se as famílias completas. No futebol ou na petanca só participam os homens; as mulheres ficam à parte, a tratar da casa e dos filhos. Na matança do porco participam todos e, assim sendo, é uma verdadeira oportunidade para unir famílias completas.
Curiosa é, actualmente, a dualidade associada à matança caseira do porco na serra algarvia. Por um lado, pratica-se com a preocupação de manter alguma discrição, não vá a guarda aparecer. Mas, por outro, já é motivo para eventos promovidos por associações e juntas de freguesia, como é o caso da Associação dos Amigos da Cortelha que organiza, anualmente, no meses de Janeiro, uma muito participada caminhada pela Serra do Caldeirão, temperada com a recriação da matança tradicional do porco!
A verdade é que tal dualidade assenta no desconhecimento da lei. O abate de suínos fora dos matadouros é proibido se a carne e outros sub-produtos dos mesmos se destinarem ao consumo público (Decr.-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro). Mas quando é destinada ao autoconsumo, ou seja, sem qualquer finalidade comercial, é permitida (Decr.-Lei nº 142/2006, de 27 de Julho, e Despacho nº 14535-A/2013). De acordo com a ASAE, é autorizada a matança em duas condições:
Para autoconsumo, desde que as carnes obtidas se destinem exclusivamente ao consumo doméstico do respetivo produtor, bem como do seu agregado familiar, e numa quantidade não superior a 3 suínos por ano.
"Matança tradicional de suíno", organizada por entidades públicas ou privadas, desde que as carnes se destinem a ser consumidas em eventos ocasionais, mostras gastronómicas ou de caráter cultural.
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