O filósofo José Gil escrevia ontem à noite no Público online, num ensaio intitulado O medo, que:
"Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação,
e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas."
Aurélio Nuno Cabrita perguntou recentemente no Sul informação, num oportuno texto de opinião, se O Algarve precisa de uma nova barragem na Foupana ou de "novos" autarcas? Com frontalidade afirmou que uma barragem na Ribeira da Foupana, tão suspirada por alguns, será de utilidade muito reduzida para resolver os problemas da escassez de água na região, e especialmente no Sotavento. Remata a discussão com uma frase simples, objectiva e (quase) inegavelmente verdadeira: "Se não chover, as albufeiras não enchem, exista uma ou uma dezena." Em alternativa à referida barragem preconiza autarcas mais competentes, "à altura do século XXI" e dos complexos desafios a que é indispensável fazer face.
Aurélio Nuno Cabrita aponta um problema, que apelida de realidade traumática, e sobre ele incide grande parte da sua análise e discussão: cerca de 30% da água que entra nos sistemas de abastecimento não é faturada. Ou seja, perde-se nas condutas... À semelhança dos comentários acima referidos, o Eng.º do Ambiente fala verdade.
No entanto, não esclarece o real significado desse número e pode induzir os seus leitores a uma conclusão que está alheada da realidade, porque, na verdade, resolver o problema do desperdício de água nas condutas ajudará certamente, mas muito pouco, para resolver a realidade da escassez permanente e acentuada, mesmo "traumática", de água no Algarve.
Vejamos:
No Algarve, no ano de 2017, de acordo com a Pordata, foram distribuídos pelas redes de abastecimento público dos 16 municípios 54.056 milhares de metros cúbicos de água, o que corresponde a um consumo anual de 118,9 m3 por habitante servido com um sistema público de abastecimento de água. Note-se que na região há ainda quase 10% da população que não recebe água através dessa rede. Segundo a ERSAR, no ano de 2018, para 14 municípios algarvios, há em média um desperdício de 31,9% da água distribuída nesses mesmos sistemas públicos de abastecimento de água.
Consequentemente, se não houvesse esse desperdício, estariam disponíveis mais 15.257 milhares de metros cúbicos de água! Este volume anual de água é a tradução de um número considerável (31,9%), mas ambíguo, em algo bastante concreto e objectivo (15.257 milhares de m3).
No entanto, quando se compara esse número com a capacidade de armazenamento das barragens algarvias, percebe-se o seu significado a partir de uma perspectiva diferente.
Vejamos:
As seis barragens algarvias têm, de acordo com o SNIRH, uma capacidade útil de armazenamento de cerca de 423.650 milhares de metros cúbicos. Como toda a análise em curso está centrada no abastecimento, pode-se dar especial atenção às três barragens vocacionadas para o abastecimento (Odelouca, Odeleite e Beliche) e, então, a capacidade útil de armazenamento é de 321.600 milhares de metros cúbicos de água.
Logo, a água desperdiçada nos sistemas públicos de abastecimento não é mais do que 4,7% da capacidade útil de armazenamento das três acima referidas barragens. E o que parecia muitíssimo é, afinal, relativamente pouco...
De qualquer forma, é possível fazer dois rankings (e cada ranking vale o que vale...) dos municípios que mais desperdiçam água no Algarve. O primeiro usa como critério de seriação a percentagem de água não facturada, ou seja, a percentagem de água desperdiçada anualmente nas condutas municipais
São Brás de Alportel, Silves e Vila do Bispo surgem, respeitando-se este critério, no topo da gestão desmazelada da água.
O segundo ranking é distinto e usa como critério de seriação o volume total de água não facturada, ou seja, a quantidade efectiva de água anualmente desperdiçada nas condutas municipais.
Analisando os dados disponíveis desta forma, são então Loulé, Albufeira e Lagos os leaders algarvios da gestão desmazelada da água! Três concelhos grandes, fortemente turísticos e financeiramente confortáveis pelas receitas que esse mesmo turismo gera continuamente para os cofres municipais. Mais palavras para quê...
Igualmente preocupantes são outros números que se podem consultar na Pordata, como os dos valores anuais médios de consumo de água por habitante. A série homogénea disponível começa em 2011 e os valores anuais até 2016 estão sempre próximos de 100 m3/hab.ano. Mas nos anos mais recentes há um aumento progressivo e o máximo foi atingido em 2017. Em síntese, cada vez se consome mais água, quando o imperiosamente necessário seria economizar!
Não se aqui pretende contradizer a recente opinião de Aurélio Nuno Cabrita, mas sim complementá-la e destacar que o problema da escassez estrutural de água no Algarve não se resolve com a eliminação do desperdício (fugas) nas condutas dos sistemas públicos de abastecimento de água. Essa tarefa pode ser necessária mas está longe de ser suficiente e muito longe de ser uma parte relevante da solução.
Regressando ao ensaio do filósofo José Gil, ao medo, à pandemia de COVID-19, às alterações climáticas e à escassez estrutural de água no Algarve, um outro medo paira já, ou começará a pairar em breve, sobre as populações do Sotavento algarvio.
O medo da aridez permanente, da avassaladora desertificação física e humana, da inviabilidade crescente da ocupação do território, do surgimento de refugiados climáticos a partir do Sotavento algarvio e, também, do baixo Alentejo interior. É esse um caminho que estamos irrefutavelmente a trilhar, só que nos distraímos dele porque agora todas as atenções estão exclusivamente centradas no COVID-19.
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